quarta-feira, 1 de agosto de 2007

A minha família poética. II

W. H. Auden

Canção

Dizem que esta cidade tem dez milhões de almasUmas vivem em palácios, outras em mansardas;contudo não há lugar para nós, minha querida, não há lugar para nós.Uma vez tivemos uma pátria e julgávamos que era bela.Olha para o mapa e lá a encontrarás;mas não poderemos regressar tão cedo, minha querida, não podere-mos regressar tão cedo.O cônsul deu um murro na mesa e disse:se não têm passaportes estão oficialmente mortos;mas nós ainda estamos vivos, minha querida, ainda estamos vivos.Lá em baixo no adro um velho teixotodas as primaveras floresce de novo:e os velhos passaportes não florescem, minha querida, os velhospassaportes não florescem.Fui a um comissariado e ofereceram-me uma cadeira.disseram polidamente para voltar no ano seguinte:mas onde iremos agora, minha querida, onde iremos agora?Fui a um comício público; o orador levantou-se e disse:se os deixarmos cá dentro, roubar-nos-ão o pão de cada dia;estava a falar de mim e de ti, minha querida, a falar de mim e de ti.Ouves um ruído como um trovão roncando no céu?É Hitler sobre a Europa dizendo: «Eles têm de morrer!»Nós estávamos no Seu pensamento, minha querida, estávamos noSeu pensamento.Vi um cão de luxo de jaqueta apertada com um alfinetevi uma porta aberta e um gato entrando;mas não eram judeus alemães, minha querida, não ale-mães.Desci ao porto e parei no caisvi os peixes a nadar. Como são livres!a dez pés de distância, minha querida, só a dez pés distânciaPasseei pelo bosque; há pássaros nas árvores,não têm políticos e cantam livremente.Não são da raça humana, minha querida, não são da raça humanaSonhei que vira um edifício com mil andaresmil janelas e mil portas;nenhuma delas era nossa, minha querida, nenhumaCorri à estação para apanhar o expresso,pedi dois bilhetes para a Felicidade;mas todas as carruagens estavam cheias, minha querida, todas ascarruagens estavam cheias.Fui parar a uma grande planície, no meio da neve a cairdez mil soldados marchavam de um lado para o outroolhando para mim e para ti, minha querida, olhando para mim epara ti.

W. H. Auden(1907-1973) Reino Unido

Nietzsche

Ecce Homo

Sim, bem sei donde provenho:
Voraz como chama em lenho,
brilho e todo me consumo

.O que toco luz se faz,
Carvão quanto deixo atrás:
sim, que sou fogo presumo! Nietzsche
[Tradução de Jorge Vilhena Mesquita]

MIGUEL DE UNAMUNO

Virá de Noite...

Virá de noite quando tudo dorme,
virá de noite quando a alma informe
se embuça em vida,
virá de noite com seu passo quedo,
virá de noite e pousará seu dedo
sobre a ferida.
Virá de noite e seu fugace lume
volverá luz todo o fatal queixume;
virá na treva,
com seu rosário, soltará as contas
do negro sol, que dão cegueiras prontas,
e tudo as leva!
Virá de noite que é mãe, caridade,
quando no longe ladre a saudade
perdido agouro;
virá de noite; apagará seu prazo
mortal latido e deixará o ocaso
vazio de ouro...
Virá uma noite recolhida e vasta?
Virá uma noite maternal e casta
de lua plena?
E virá vindo num devir eterno;
virá uma noite, derradeiro inverno...
noite serena...
Virá como se foi, como se há ido
- ressoa ao longe o fatal latido -,
não faltará;
será de noite mais que quando aurora,
virá na hora, quando é o ar quem chora,
e chorará...
Virá de noite, numa noite clara,
noite de lua que ao sofrer ampara,
noite desnuda,
virá, virá... vir é porvir... passado
que passa e queda e que se queda ao lado
e nunca muda...
Virá de noite, quando o tempo aguarda,
quando uma tarde pelas trevas tarda
e espera o dia,
virá de noite, numa noite pura,
quando do sol o sangue se depura,
do meio-dia.
Noite há-de ser enquanto venha e chegue,
e o coração rendido se lhe entregue,
noite serena,
de noite há-de vir... quem há-de vê-lo?
De noite há-de selar seu negro selo,
noite sem pena.
Virá de noite, aquela que dá a vida,
e em que na noite ao fim a a alma olvida,
trará a cura;
virá na noite que nos cobre a todos
e espelha o céu nos reluzentes lodos
em que o depura.
Virá de noite, sim, virá no escuro,
seu negro selo servirá de muro
que encerra a alma;
virá de noite sem fazer ruído,
apagar-se-á nos longes o latido,
virá a calma...virá a noite...

MIGUEL DE UNAMUNO

RAINER MARIA RILKE

Hora grave

Quem chora agora em algum lugar do mundo,
sem razão chora no mundo,
chora por mim.
Quem ri agora em algum lugar da noite,
sem razão se ri na noite,
ri-se de mim.
Quem anda agora em algum lugar do mundo,
sem razão anda no mundo,
vem para mim.
Quem morre agora em algum lugar do mundo,
sem razão morre no mundo,
olha para mim.

RAINER MARIA RILKE
(Tradução de José Paulo Paes)

Antero de Quental

A um poeta

Tu, que dormes, espírito sereno,Posto à sombra dos cedros seculares,Como um levita à sombra dos altares,Longe da luta e do fragor terreno,
Acorda! é tempo! O sol, já alto e pleno,Afuguentou as larvas tumulares...Para surgir do seio desses mares,Um mundo novo espera só um aceno...
Escuta! é a grande voz das multidões!São teus irmãos, que se erguem! são canções...Mas de guerra... e são vozes de rebate!
Ergue-te pois, soldado do Futuro,E dos raios de luz do sonho puro,Sonhador, faze espada de combate!


Antero de Quental

Goethe

Quietude no oceano (Das Gedichte - Erst Band)

Um silêncio desceu, profundo, sobre as águas, E sem arfar sequer repousa o velho mar; Entanto o pescador, a ruminar as mágoas, Volve lasso, em redor, os olhos devagar. Não há nenhum rumor por mais subtil e brando, Não há no mar ou no ar vagas nem viração... — Só existe o silêncio imenso amotalhando A impassível aquosa e límpida amplião.

Goethe ( Tradução de Yan Ay )

Guerra Junqueiro

Oração ao pão

Com quantos grãos de trigo um pão se fez?Dez mil talvez?
Dez mil almas, dez mil calvários e agonias,Todos os dias,Para insuflar alentos n'alma impuraDuma só criatura!
Homem, levanta a Deus o coração,Ao ver o pão.
Ei-lo em cima da mesa do teu lar;Olha a mesa: um altar!
Ei-lo, o vigor dos braços teus,O pão de Deus!
Ei-lo, o sangue e a alegria,Que teu peito robora e teu crânio alumia!
Ei-lo a fraternidade,Ei-lo, a piedade,Ei-lo, a humildade,
Ei-lo a concórdia, a bem-aventurança,A paz em Deus, tranquila e mansa!
Comer é comungar. Ajoelha, orando,Em frente desse pão, ou duro ou brando.
Antes que o mordas, tigre carniceiro,Ergue-o na luz, beija-o primeiro!
Depois devora! O pão é corpo e almaEm corpo e almaO comerás,Tigre voraz.
São dez milalmas brancas, cor de Lua,Transmigrando divinas para a tua!

Guerra Junqueiro, "Vibrações Líricas",
Lello & Irmão editores, Porto, 1950

Ingeborg Bachman

TODOS OS DIAS

A guerra já não se declara,prossegue-se.O inauditotornou-se quotidiano. Os heróisficam longe dos combates. Os fracossão transferidos para as zonas de fogo.A farda do dia é a paciência,a medalha a pobre estrelada esperança sobre o coração.
Conferidaquando nada mais acontece,quando o tiroteio emudece,quando o inimigo se torna invisívele a eterna sombra das armasrecobre o céu.
Conferidapor deserção da bandeirapor coragem face ao amigo,por denúncia dos segredos infamese por desobediênciaa todas as ordens.
Ingeborg Bachman
traduzida por José Lima

Castro Alves

AS DUAS FLORES

São duas flores unidasSão duas rosas nascidasTalvez do mesmo arrebol,Vivendo,no mesmo galho,Da mesma gota de orvalho,Do mesmo raio de sol.
Unidas, bem como as penasdas duas asas pequenasDe um passarinho do céu...Como um casal de rolinhas,Como a tribo de andorinhasDa tarde no frouxo véu.
Unidas, bem como os prantos,Que em parelha descem tantosDas profundezas do olhar...Como o suspiro e o desgosto,Como as covinhas do rosto,Como as estrelas do mar.
Unidas... Ai quem puderaNuma eterna primaveraViver, qual vive esta flor.Juntar as rosas da vidaNa rama verde e florida,Na verde rama do amor!


Castro Alves

Mário Sá Carneiro

Fim


Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes,
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas!

Que o meu caixão vá sobre um burro

Ajaezado à andaluza...
A um morto nada se recusa,
Eu quero por força ir de burro.
Mário Sá Carneiro

Titulo: Interrogações Autor: Yan Ayrton.

Do devir da infância

saltamos para a sofreguidão da Juventude

e dela adentramos

meio inadequados

a floresta de árvores interrogativas de ser adulto

e daí idoso.

\\

E nestas dimensões de ser

Há necessidades

das perguntas sem respostas,

,do azul desvairado

e não compreendido,

da palavra comunicada e não dita,

do se passar pela vida

sem ter compreendido ou podido ser,

da lágrima pendente

e nao chorada...

\\

Eu não fui que não

um conflitado inquieto

posto na solidão da umidade escura,

uma emoção sem espaço perdida no tempo,

a tristeza da branca lisa brisa

que distancia,enevoa e esconde o mar.

\\

(.................)

E anos se passaram não pasteurizados

Dificultados complexados e cinzas.

\\

E qdo compreendi que era necessário viver

meu olhar se tornou extenso

como o mundo

e eu senti a angústia inaudita dele

a consciencia do ser

a busca dos homens

,o mistério das coisas,

a opção dos caminhos....

\\

Bebi nas tavernas ardentes,

sorri até sorrisos sem dentes...

\\

Amei :Busquei nos sonhos

seres de ardentes faces, loiras fadas,

sereias míticas,seres semiangélicos

e venus morenas...

Ahh cantilenas em ânsias ciclicas

em nada serenas...

\\

Um dia encontrei a vida

inventada no azul

e trazida ate aqui

no fervilhar do Anima Deum na Terra

\\

singrando eras e eras

em evolver de evoluções

- tempo dilatado -q

ue tudo encerra :

em akásicos arquivos

no fluir e caminhar de mim..

\\

Nu nasci por entre sangue

o Tempo e a eternidade desse fluido

a grandeza e a miséria da materialidade

,a hediondez de ttas vidas sujas de sangue

em injustiças homéricas de plural clicotímica escravidão...

\\


Mas eu sonhei de que a vida era azul

E que um dia dormiríamos libertos e desprendidos

e que acordaríamos enfim

retornados à anjos

(....Ohh mistério misterium inauditum....!!!! )


Oxalá Quiçá Porventura

Que seja assim,

Em ventura e aventura

O acercar-se do Mistério Final. YAN Ayrton. BH <>

PS: Todos vcs amigos e amigas q me visitam e me convivem eu os estimo a todos e os tenho bem dentro de mim!!! Vcs todos signifikam muito...CADA UM DE VCS EH ESPECIAL E SINGULAR....Yan Ayrton ...

Yan Ayrton

ANTERO DE QUENTAL Poeta: 1842 - 1891
SÓ MALES SÃO REAIS, SÓ DOR EXISTE. PRAZERES, SÓ OS GERA A FANTASIA..

QUANDO TUDO ACONTECEU...

1842: Em Ponta Delgada, a 18 de Abril, nasce Antero Tarquínio de Quental.

A 2 de Maio é baptizado na Igreja Matriz de S. Sebastião de Ponta Delgada.

- 1847: Começa a aprender francês com António Feliciano de Castilho que vive nessa altura na capital açoriana. - 1852: Em Agosto vem com sua mãe para Lisboa, matriculando-se no Colégio do Pórtico, do qual Castilho é director. - 1853: Antero regressa a Ponta Delgada onde em 7 de Julho de 1855 concluirá a Instrução Primária. Em 20 de Outubro desse mesmo ano volta a Lisboa onde frequenta o colégio Escola Académica. - 1856: Inscreve-se como aluno interno no Colégio de S. Bento, em Coimbra. Escreve os primeiros versos que lhe são conhecidos numa carta enviada a seu irmão André. - 1858: Após algum tempo de estudo em Lisboa, com a ajuda de seu tio paterno Filipe de Quental, lente de Medicina, conclui os estudos preparatórios para o ingresso na Universidade de Coimbra, onde se matricula no 1º ano de Direito em 28 de Setembro, sendo admitido a 2 de Outubro. - 1859: Em Abril é condenado pelo Conselho de Decanos a oito dias de prisão por, com outros estudantes, ter tomado parte num acto praxístico - armado de um cacete e com o rosto coberto, «dando grau a caloiros e cortando-lhes o cabelo». Em 24 de Maio é aprovado no acto do 1º ano de Direito. Em Setembro matricula-se no 2º ano de Direito. - 1860: Mora no Largo da Sé Velha, ficando também por vezes em casa de seu tio Filipe de Quental, na Travessa da Couraça. Em Janeiro publica nos Prelúdios Literários «Na Sentida Morte do Meu Condiscípulo Martinho José Raposo». Em Janeiro, Fevereiro, Novembro e Dezembro, também nos Prelúdios, publica «Leituras Populares». Em Março, com Alberto Sampaio, Alberto Teles e outros, dirige o jornal O Académico - Publicação Mensal, Científica e Literária. - 1861: Em Abril participa na fundação da Sociedade do Raio, uma sociedade secreta que se caracteriza por lançar desafios blasfemos a Deus durante a ocorrência de trovoadas. Em O Fósforo, publica um artigo sobre João de Deus: «A Propósito de um Poeta». Em Outubro matricula-se no 4º ano. - 1862: Em 21 de Outubro saúda, em nome da Academia, o príncipe Humberto de Sabóia. - 1863: Em 22 de Julho faz exame e passa para o 5º ano. - 1864: Em 2 de Julho conclui o curso de Direito. 1866: Em Janeiro tenta alistar-se no exército de Garibaldi. - 1867: Em 19 de Agosto embarca para Ponta Delgada. - 1868: Em 31 de Outubro regressa a Lisboa. 1869: Em Julho embarca para os Estados Unidos. - 1871: Em 22 de Maio as Conferências são inauguradas. - 1874: Adoece gravemente em Ponta Delgada. - 1876: Em Maio desloca-se a Ponta Delgada, regressando em Julho a Lisboa. - 1877: No início de Julho faz uma viagem a Paris, onde consulta o Dr. Charcot. - 1878: Entre Fevereiro e Junho hospeda-se em casa de Oliveira Martins, no Porto. - 1880: Em fins de Maio, numa carta a Alberto Sampaio inclui o soneto «Estoicismo». - 1882: Em Maio escreve os sonetos «Na Mão de Deus» e «Evolução». - 1883: Em Maio escreve o soneto «Voz Interior». - 1884: No Palácio de Cristal, no Porto, encontra-se com Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Oliveira Martins e Ramalho Ortigão. Tiram a fotografia do «grupo dos cinco». - 1885: Encontra-se Com Carolina Michaëlis. - 1886: Perto do fim do ano recebe a primeira carta de Wilhelm Storck com sonetos seus traduzidos para o alemão. - 1887: Em 8 de Maio desloca-se a Ponta Delgada. - 1888: Pensa candidatar-se a uma cadeira da projectada Escola Normal Superior. - 1889: Columbano pinta-lhe o retrato que se conserva no Museu do Chiado. - 1890: Em 11 de Janeiro - Ultimato inglês. - 1891: Jantar de despedida, oferecido pelos Vencidos da Vida no Tavares.

Em 5 de Junho parte para Ponta Delgada.

No dia 11 de Setembro compra um revólver e, às 20 horas, no lado norte do Campo de S. Francisco, suicida-se com dois tiros.

DE TUDO, O PIOR MAL É TER NASCIDO ( ANTERO DE QUENTAL )

É um dia húmido de Novembro. São Miguel está, como quase sempre, sob uma espessa camada de nuvens. Azorian torpor é como os ingleses chamam a esta atmosfera opressiva, obsidiante, que não só atormenta o corpo como parece infiltrar-se e assediar a mente. Na baixa de Ponta Delgada, ao lado da Tabacaria Açoriana, fica a loja de quinquilharias de Benjamim Ferin. Antero entra na loja e cumprimenta o empregado. Está calmo, tranquilo. Pergunta se tem revólveres à venda. O empregado olha-o surpreendido. Antero, sorri:
- Sabe, vou morar para um local longe de vizinhança. Com os ratoneiros que andam por aí, é bom estar prevenido.
- Sem dúvida, senhor doutor. É mais prudente estar prevenido.
E vai buscar as armas que tem para venda. Antero analisa-as uma a uma. Acaba por optar por um revólver Lefaucheux. O empregado ensina-o a carregá-lo.
- Nunca peguei numa arma de fogo...
O homem dá-lhe mais algumas explicações. Quando vai a retirar as balas do tambor, Antero diz-lhe:
- Não, não. Deixe-o assim, já pronto.
O homem obedece, mas avisa de que convém nunca esquecer que a arma está carregada, pronta a disparar. Às vezes há acidentes...
- Esteja descansado. Vou ter todo o cuidado.
Enquanto embrulha o revólver com sucessivas camadas de papel, o empregado pergunta:
- Ouvi contar que o senhor doutor ia para Lisboa?
- Pensei nisso, mas desisti, pois ultimamente tenho passado melhor.
- Ainda bem, senhor doutor. Ainda bem.
Antero tira da algibeira algumas libras que põe sobre o balcão:
- Faça o favor de se pagar. Eu nunca me habituei a fazer dedução de moeda fraca.
Antero sai. Os homens que estão à porta, saúdam-no respeitosamente.
Vai a casa de seu primo, Augusto de Arruda Quental. Quando entra coloca o embrulho sobre uma mesa e, por cima, põe o chapéu. Conversa tranquilamente com o primo. Falam de banalidades. O tempo, a política, coisas da família. Quando Antero se ergue para sair, o primo dá-lhe o chapéu e faz depois menção de lhe entregar também o embrulho. Antero quase grita:
- Não lhe pegues!
Despedem-se.
Metendo pela Rua de S. Brás, encaminha-se a passos lentos para o Campo de São Francisco, uma ampla praça pública de Ponta Delgada. Aí, senta-se num banco, junto do muro do convento da Esperança.. Nesse muro, por cima do banco, um dístico em pedra lavrada mostra a palavra esperança sobreposta a uma âncora. Antero sorri. Esperança e uma âncora que o segurem à vida, eis precisamente o que lhe falta. Olha o largo, com as suas árvores, com as suas simétricas placas redondas de relva, circundando o pequeno coreto implantado no centro. Há pouca gente. Uma senhora passa perto levando pelas mãos duas crianças. À memória ocorre-lhe a imagem de um menino passeando ali, pela mão de seu pai, muitos anos atrás. De tudo, o pior mal é ter nascido, pensa.

A REVELAÇÃO DE UM MUNDO NOVO E SUPERIOR

Nasci nesta ilha de São Miguel descendente de uma das mais antigas famílias dos seus colonizadores, dirá Antero numa carta autobiográfica. Seu pai, Fernando de Quental foi um dos 7500 liberais que, em 1832, desembarcaram no Mindelo, a norte do Porto e contribuíram para implantar o regime constitucional. O avô paterno, André da Ponte Quental da Câmara e Sousa, destacara-se também pelas suas convicções liberais. Fora amigo de Bocage e com ele partilhara o cárcere. Militara depois na guerrilha contra os invasores franceses. Será, em 1822, signatário da Constituição, como deputado por São Miguel. A mãe de Antero, Ana Guilhermina da Maia, deu-lhe uma educação muito religiosa que irá contribuir para as suas reflexões místicas, mesmo depois de abandonar a religião. Aliás, uma das suas primeiras emoções intelectuais ocorre quando, em 1852, ouve ler a «Ode a Deus», de Alexandre Herculano:
Teria os meus dez anos, quando pela primeira vez, a ouvi recitar a um bom padre, que me ensinava rudimentos de gramática latina. Não ouso dizer que tivesse entendido. E, no entanto, profunda foi a impressão que recebi, como a revelação dum mundo novo e superior, a revelação do ideal religioso. Escapava-me o sentido de muitos conceitos, a significação de muitas palavras: mas, pelo tom geral de sublimidade, pela tensão constante de um sentimento grande e simples, aqueles versos revolviam-me, traziam-se lágrimas aos olhos, como se me introduzissem, embalado numa onda de poderosa harmonia, na região das coisas transcendentes...[i]
Em 1847 aprende francês com António Feliciano de Castilho, o poeta cego, figura de proa do romantismo, que, entre esse ano e 1850, reside em Ponta Delgada, provocando uma autêntica revolução cultural entre a sociedade da cidade. L'Ami des Enfants, de Bergier, é o livro de leitura de Antero. Em 1849, compra A Felicidade pela Agricultura, de Castilho, um dos primeiros livros da sua biblioteca. Frequenta o Liceu Açoriano, uma escola particular. Em 1850, recebe lições de inglês com Mr. Rendall. Em Agosto de 1852 vem para Lisboa com sua mãe onde frequenta o Colégio do Pórtico, de que é director o seu já conhecido Castilho. Mais tarde, escreverá ao seu velho mestre: V.Ex.a. aturou-me em tempos no seu Colégio do Pórtico, tinha eu ainda dez anos, e confesso que devo à sua muita paciência o pouco francês que ainda hoje sei. [ii] No ano seguinte, regressa a Ponta Delgada com seu pai e ali, em 1855, concluirá os estudos primários no Liceu da cidade. Em Outubro, de novo em Lisboa, estuda na Escola Académica. Em 1856, é aluno interno no Colégio de S. Bento, em Coimbra, junto aos arcos do Jardim Botânico. Até 1858, concluirá os estudos preparatórios para o ingresso na Universidade de Coimbra. Escreve os primeiros versos. Em Setembro matricula-se no primeiro ano do curso de Direito.

COIMBRA: A REVOLUÇÃO INTELECTUAL E MORAL

O facto mais importante da minha vida durante aqueles anos, e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução intelectual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança arrancada ao viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu plácido sono histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro, onde mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito moderno. Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungentes quanto, espírito naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem esforço a uma regra reconhecida. Achei-me sem direcção, estado terrível de espírito, partilhado mais ou menos por quase todos os da minha geração, a primeira em Portugal que saiu decididamente e conscientemente da velha estrada da tradição. Se a isto se juntar a imaginação ardente, com que em excesso me dotara a natureza, o acordar das paixões amorosas próprias da primeira mocidade, a turbulência e a petulância, os fogachos e os abatimentos de um temperamento meridional, muito boa fé e boa vontade, mas muita falta de paciência e método, ficará feito o quadro das qualidades com que, aos dezoito anos penetrei no grande mundo do pensamento e da poesia.
Antero não é um estudante brilhante, mas vai avançando no seu curso, que terminará no ano lectivo de 1863-64. Entretanto, irá conhecendo os irmãos José e Alberto Sampaio, António de Azevedo, Germano Meireles, cuja amizade o acompanhará toda a vida. É deste período que datam os poemas que irá reunir em Primaveras Românticas, «Versos dos vinte anos», como lhes chamará em subtítulo:
Somente amor... Somente?! é pouco esta palavra?Duas sílabas só - em pouco um mundo está – Loucos! mas, quando o amor se expande, e cresce, e lavra, Bem como incêndio a arder, tão pouco inda será?
Em Maio de 1862, recita no Teatro Académico, perante Castilho, as estrofes «À História» com que iniciará a 1ª edição das Odes Modernas. Castilho diz a Filipe de Quental, lente de Medicina e tio de Antero: «Seu sobrinho é um poeta de génio».
Finalmente, em 2 de Julho de 1864, conclui a formatura: A Fatalidade que me persegue com tenacidade verdadeiramente paternal, não me quis poupar - não quis deixar sem coroa este templo de sandice e ridículo chamado formatura; não lhe tremeu a mão adunca e férrea escrevendo no livro-caixa do Fado esta sibilina palavra BACHAREL!!! E sou Bacharel!!! E Bacharel nemine-discrepante!! E não houve um R justiceiro, um R honesto e conscencioso que protestasse, levantando no ar com terrível assovio, o seu rabo de serpente, não houve R - um só - que protestasse contra essa sentença fatal, que assim condena um inocente cábula a arrastar perpetuamente, qual rocha de sísifo, essa grilheta de uma carta de Bacharel em Direito!! Nemine-Discrepante!!!
Sabeis vós o que é um nemine discrepante? É trocar a sua coroa de poeta, pelo círculo de sebo da borla doutoral dum Neiva! É ler no horizonte da vida, em vez do poema de oiro das aspirações embalsamadas, a letra gorda e enchundeada duma sempiterna Sebenal!! É escambar (!) a púrpura brilhante das aspirações sublimes, pela albarda, vermelha da vermelhidão das digestões felizes, o capelo de Doutor! É ter por alma um sofisma, por vida um à-contrário-sensu, por templo santo a audiência, por culto a Deus e tudo a Ordenação do Reino!! Este trecho duma meditação que actualmente componho em estilo Oriente, e em que trabalho debaixo da salutar influência da sombra do Neiva, vos dará ideia do estado moral do vosso Antero (o BacharelEm 1865, depois de uma viagem a São Miguel, Antero regressa a Coimbra. Em Setembro desse ano, Castilho escreve ao editor António Maria Pereira uma carta, que será publicada como posfácio do Poema da Mocidade, de Pinheiro Chagas. Nela, o velho poeta discute poemas de Antero de Quental, Teófilo Braga e Vieira de Castro, ironizando particularmente sobre as Odes Modernas e sobre dois poemas de Epopeia da Humanidade, de Teófilo Braga. Antero resolve descer à liça e contestar ao seu velho mestre o direito de se arvorar em árbitro das letras nacionais - faz publicar uma carta-aberta a Castilho, Bom-senso e Bom-gosto, onde, exaltadamente, se insurge contra o desdém de Castilho relativamente à nova geração de poetas. E desencadeia-se a que é talvez a mais famosa polémica literária portuguesa, conhecida por Questão Coimbrã ou Questão do Bom Senso e Bom Gosto: A famosa Questão Literária ou Questão de Coimbra, que durante mais de seis meses agitou o nosso pequeno mundo literário e foi o ponto de partida da actual evolução da literatura portuguesa. Os novos datam todos de então. O Hegelianismo dos coimbrões fez explosão. O velho Castilho, o Arcade póstumo, como então lhe chamara, viu a geração nova insurgir-se contra a sua chefatura anacrónica. Houve em tudo isto muita irreverência e muito excesso, mas é certo que Castilho, artista primoroso mas totalmente destituído de ideia, não podia presidir, como pretendia, a uma geração ardente que surgia, e antes de tudo aspirava a uma nova direcção, a orientar-se como depois se disse, nas correntes do espírito da época. Havia na mocidade uma grande fermentação intelectual, confusa, desordenada, mas fecunda. Castilho, que a não compreendia, julgou poder suprimi-la com processos de velho pedagogo. [iv]
Em Dezembro, Antero publica ainda um folheto sobre o mesmo tema, A Dignidade das Letras e as Literaturas Oficiais, texto doutrinariamente mais denso do que a carta, e no qual responsabiliza a literatura pelo destino do povo português.
É neste conturbado período que pensa alistar-se no exército de Garibaldi. Desafia o seu amigo António de Azevedo Castelo-Branco: Tens naturalmente lido os jornais. Sabes do que vai por Itália e dos alistamentos de voluntários Garibaldinos. Creio ser para nós uma boa ocasião de sairmos do absurdo sopa-vaca e arroz da vida ordinária. Queres ir? Un bel morir tutta la vita onora... [v]
No início de 1866, Ramalho Ortigão sai em defesa de Castilho com o folheto A Literatura de Hoje. Acusa Antero de cobardia, pois este invocara como argumentos a velhice e a cegueira do poeta: O caso era cómico e não trágico. Ramalho Ortigão escreveu insolências bastante indignas a meu respeito num folheto a propósito da sempiterna questão Castilho. Eu vim ao Porto para lhe dar porrada. Encontrei, porém, o Camilo o qual me disse que adivinhava o motivo da viagem e que antes das vias de facto, ele iria falar com o homem para ele dar satisfação. Aceitei. A explicação, porém, do dito homem pareceu-me insuficiente e dispunha-me a correr as eventualidades da bofetada quando me veio dizer o Camilo que o homem se louvava em C.J.Vieira e Antero Albano com plenos poderes de decidir a coisa e que fizesse eu o mesmo em dois amigos meus; na certeza de que uns e outros seriam considerados padrinhos de um duelo (!) no caso de se não entenderem a bem... Que can-can! [vi] No duelo, em 4 de Fevereiro, logo no primeiro assalto, Antero fere Ramalho num braço. A luta termina, as honras estão lavadas. Os dois escritores reconciliam-se. Diz Camilo: Em 1866 na belicosa cidade do Porto, defrontaram-se de espada nua dois escritores portugueses de muitas excelências literárias e grande pundonor. Correu algum sangue. Deu-se por entretida a curiosidade pública e satisfeita a honra convencional dos combatentes. Alguns dias volvidos ia eu de passeio na estrada de Braga e levava comigo a honrosa companhia de um cavalheiro que lustra entre os mais grados das províncias do Norte. No sítio da Mãe-de-Água apontei a direcção de um plano encoberto pelos pinhais e disse ao meu companheiro: Foi ali que há dias a «Crítica Portuguesa» esgrimiu com o «Ideal Alemão»! [vii]

DESASSOSSEGO
No mês seguinte, em 15 de Março, embarca no vapor Leal para São Miguel. Está inquieto: Estou efectivamente desassossegado e muito; mas como não estar? Cada vez mais o falso da minha posição nesta terra lusitana. Não me entendo com os homens e com as coisas; apenas com o céu e com os montes, mas isto não é suficiente. [viii] Para onde irei? Ignoro; talvez daqui até lá, indague dum emprego para a Índia, para Goa ou Macau, países onde a vida moderna não deve ostentar-se em muito excessivo luxo de seu vermelho sangue burguês e gordura de banalidade, como acontece nesta Europa soesmente comodista, esta Cartago sem Moloch - mas com muitos mercenários. [ix] Tenho pena de não ter achado aqui o silêncio e a despreocupação que esperava e ansiava... Se eu tivesse achado um ermitério de S. Columbano, uma ilha - no mar - ah! mas bem no mar! Assim o julguei e desejo ainda. [x]
Em 1 de Junho regressa a Lisboa. Vai residir na Travessa de Santo António, à Alegria. Nesse Verão, resolve ir trabalhar como tipógrafo para a Imprensa Nacional: Há oito dias que entrei para a Imprensa Nacional e como me sinto cada vez mais resolvido a continuar neste caminho (que, quando não tivesse mais razões por si, tinha esta triunfante de ser único).[xi]
Mas, afinal, havia outros caminhos. Antero resolve ir fazer uma «experiência proletária» em Paris. A experiência esgota-se em Janeiro e Fevereiro de 1867. Matricula-se no Colégio de França. Mas em breve se satura de Paris: Se pudesse saía amanhã mesmo de Paris. Que me importa a Exposição? Assistir às grandes loucuras do século, faz bem a alguém, enche a vida? Não! Antes de ontem saí no meio de um curso no Colégio de França. [xii]
O seu estado de saúde obriga-o a vir a Portugal descansar durante três meses. No final da Primavera volta a Paris. Visita Michelet a quem oferece um exemplar das Odes Modernas.
Regressa a Portugal e, em 14 de Agosto, embarca no lugre Gil para Ponta Delgada. Na Primavera acalenta mais um projecto guerreiro: A vida activa também me seduz a mim, e muito. É mesmo nesse sentido que pude formar o único plano resistente e que dura há meses já. Por ser extravagante nem por isso deixa de ser óptimo. É ir assentar praça de voluntário nos Zuavos Pontifícios, em Roma. (...) Que humorismo profundo em todos os contrastes de uma tal vida! Ateus a manterem guarda ao Vaticano! Socialistas a defenderem o poder temporal do Papa! [xiii]
Permanece em São Miguel até Outubro. Quando regressa a Lisboa, triunfa em Espanha a revolução. É contactado por revolucionários espanhóis que o aliciam para a causa do iberismo. Projecta ir trabalhar num jornal em Madrid. Em Novembro publica: Portugal Perante a Revolução de Espanha - Considerações sobre o Futuro da Política Portuguesa no Ponto de Vista da Democracia Ibérica. Em Julho de 1869 faz uma viagem aos Estados Unidos no barco de um amigo. A confederação federalista entusiasma-o, como possível modelo para a confederação iberista. Visita Halifax e Nova Iorque, onde estuda as questões sociais relacionadas com o proletariado norte-americano. Regressa em Novembro. Essa viagem é descrita por António Arroio no folheto A Viagem de Antero do Quental à América do Norte.

SE EM PORTUGAL HOUVESSE OITO OU DEZ OLIVEIRA MARTINS...

Em Novembro de 1869, na Travessa do Guarda-Mor, em Lisboa, constitui-se o Cenáculo, grupo de intelectuais de que fazem parte, além de Antero, Eça de Queirós, Ramalho Ortigão, Anselmo de Andrade, Carlos Mayer, João de Deus, Manuel de Arriaga, Salomão Saragga, Santos Valente, Alberto Teles, Lobo de Moura, Augusto Fuschini, Mariano e Francisco Machado de Faria e Maia, António e Augusto Machado, José Tedeschi, etc. Está agora a residir em S. Pedro de Alcântara. Uma paixão amorosa frustrada, leva-o a procurar fora da capital alguma tranquilidade. É numa das suas deambulações que visita, em Outubro, Oliveira Martins, que está como engenheiro de minas em Santa Eufemia, em Espanha. O encontro com o autor de História da Civilização Ibérica, provoca-lhe uma profunda impressão: Se Portugal de hoje, assim como produziu um homem daqueles, tivesse produzido oito ou dez, ainda se salvava. Verdade é que, se Portugal, nesta geração, tivesse tido forças para produzir oito ou dez homens como Oliveira Martins, não precisava de quem o salvasse, porque esse facto só por si era o indício da força e fecundidade de espírito nacional, da sua vitalidade e saúde perfeita.[xiv]
Estuda alemão até conseguir ler na língua original Goethe, Heine e outros autores germânicos: Traduzo o Fausto de Goethe, do alemão para versos portugueses, coisa que muito me distrai.[xv] Mas o tédio e o desassossego, a doença, não o abandonam. No começo de 1871 escreve a um amigo de São Miguel: De plano em plano, e de desejo em desejo, vou descendo lentamente a espiral dos desenganos.

AS CONFERÊNCIAS DO CASINO

Em 1871, a 22 de Maio, são abertas as Conferências do Casino, que o grupo do Cenáculo, orientado por Antero, promovem. Anima-as um substracto republicano, iberista, realista, proudhoniano. Realizam-se no Casino Lisbonense e Antero pronuncia a conferência e uma outra, no dia 27: Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos. Eça de Queirós desenvolve o tema O Realismo como Nova Expressão de Arte. Salomão Sáragga, especialista em hebraísmo, quando se preparava para proferir a sua lição sobre Os Historiadores Críticos de Jesus, o governo manda, em 26 de Junho, encerrar as Conferências, alegando que constituem uma ofensa à religião e às instituições do Estado. Os protestos irrompem de diversos sectores. Antero escreve e publica, em 30 de Junho, ao presidente do Conselho de Ministros: A Portaria com que V.Ex.a. mandou fechar a sala das Conferências Democráticas, é um acto não só contrário à lei e ao espírito da época, mas sobretudo atentório da liberdade do pensamento, da liberdade da palavra, e da palavra de reunião, isto é, daqueles sagrados direitos sem os quais não há sociedade humana, verdadeira sociedade humana, no sentido ideal, justo, eterno da palavra. Pode haver sem eles aglomeração de corpos inertes: não há associação de consciências livres. Ex.mo. Sr.: nem eu nem V.Ex.a. passaremos à história: e muito menos as ineptas portarias que V.Ex.a. faz assinar a um rei sonâmbulo. Mas supondo por um momento que alguma destas coisas possa passar ao século XX, folgo de deixar aos vindouros com este escrito a certeza duma coisa: que em 1871 houve em Portugal um ministro que fez uma acção má e tola, e um homem que teve a franqueza caridosa de lho dizer. [xvi]
Inclusivamente, Alexandre Herculano, liberal católico, com a sua inquestionável autoridade, vem associar-se aos protestos. O governo cai.
Em Fevereiro de 1872, publica Primaveras Românticas: As Primaveras Românticas contêm os meus Juvenilia, as poesias de amor e fantasia, compostas na sua quase totalidade, entre 1860 e 65, que andavam dispersas por várias publicações periódicas e que só em 72 reuni em volume juntamente com mais alguma coisa do mesmo carácter e estilo. Mora agora na Rua dos Douradores. Em 7 de Março de 1873 morre seu pai e Antero torna-se proprietário rural. Mantém, com Oliveira Martins, uma polémica sobre o papel progressivo que o Cristianismo e a Idade Média terão tido como transição transcendalista necessária entre o «naturalismo» helénico e o seu ideal imanentista. Projecta a constituição de um novo partido, a União Democrática: Assentámos pois em nos constituirmos como partido fechado, com programa definido e gente escolhida, reservando-nos a liberdade de, em dados casos, nos aliarmos com este ou com aquele dos partidos republicanos e radical que estão em vias de formação. (...) O que é necessário é criar um elemento revolucionário sério, fora do exclusivo movimento operário, estreito, sem capacidade de converter ninguém, além de ser assustador para a massa burguesa. [xvii]

A bela luz da vida, ampla infinita, só vê com tédio, em tudo quanto fita, a ilusão e o vazio universais

Faz diversas viagens aos Açores. Em Julho vai a Angra do Heroísmo para consultar um médico homeopata. Em Setembro regressa a Lisboa e consulta dois médicos: Sousa Martins e Curry Cabral. Diz numa carta a um amigo: Em 1874 adoeci gravissimamente, com uma doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me completamente. A forçada inacção, a perspectiva da morte vizinha, a ruína de muitos projectos ambiciosos e uma certa acuidade de sentimentos, própria da nevrose, puseram-me novamente e mais imperiosamente do que nunca, em face do grande problema da existência. A minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral incompreensível.
No entanto, vai trabalhando nos seus sonetos. Em Maio de 1875, publica a 2ª edição de Odes Modernas, com algumas composições inéditas. Em 1876, toma contacto com a filosofia pessimista do inconsciente panteísta de Karl-Robert-Eduard von Hartmann, que muito o irá influenciar. Depois de aspirar ao Nirvana budista, procura uma consolação através da filosofia estóica: Abençoada doença se fizer de mim o homem impassível dos Estóicos, o santo de Marco Aurélio. Não digo isto brincando, e para mim, o livro das Máximas de Epicteto é um dos livros mais sérios que têm sido escritos. (...) A Fé não é só património do cristão; há também a Fé da Filosofia idealista, que pelos menos é tão boa. [xviii]
Em 28 de Novembro, sua mãe morre: Acabo de receber um dos maiores golpes que podia receber. Morreu minha Mãe. V. sabe o que é ser filósofo, mas sabe também o que é ser filho. Diga-me duas palavras das suas, fortes e boas. Eu sei o que há a dizer a mim mesmo, mas far-me-á bem que mo diga V. Eu estou muito sereno e conformado e aplicando à minha situação os dogmas da nossa comum religião. Mas isto não impede que esteja triste. [xix]
Em 1877, vai a Paris consultar Charcot e tenta uma cura hidroterápica em Bellevue. Aqui, apaixona-se por uma aristocrata francesa. O fracasso amoroso quase o leva ao suicídio. No ano seguinte tenta uma nova cura em Bellevue, mas sem sucesso. Em Fevereiro de 1878, envia a Batalha Reis o seu soneto «Nirvana», que dedicará a Guerra Junqueiro:
Para além do Universo luminoso Cheio de formas, de rumor, de lida, De forças, de desejos e de vida, Abre-se como um vácuo tenebroso. A onda desse mar tumultuoso Vem ali expirar, esmaecida... Numa imobilidade indefinida Termina aí o ser, inerte, ocioso... E quando o pensamento, assim absorto, Emerge a custo desse mundo morto E torna a olhar as coisas naturais, A bela luz da vida, ampla, infinita, Só vê com tédio, em tudo quanto fita, A ilusão e o vazio universais.
Em 1878 é convidado a candidatar-se como deputado republicano socialista pelo círculo de Alcântara. Recusa: Saberás que vim encontrar aqui a minha candidatura pelo círculo de Alcântara, lançada por uns centros republicanos que não sei bem o que são. Hoje vieram uns oficiosos falar-me nisso: declarei recusar tal candidatura e ameacei-os com uma recusa pública nos jornais se insistirem. Eis o que é a popularidade! Estou mais do que farto de representar este ridículo papel de mito e il faut que ça finisse. [xx]
A doença não o abandona. Volta a consultar Sousa Martins: Eu vou indo, não já tão bem como quando cheguei, mas não inteiramente mal. O Sousa Martins ouviu-me, apalpou-me e concluiu que nada podia concluir e que isto lhe parecia mais complicado do que julgara a princípio. [xxi]

O CENTENÁRIO DE CAMÕES

"O nosso Antero ressurgiu para a vida activa através da filosofia" - diz Eça de Queirós. Entretanto, o que está a acontecer no resto do mundo? Consulta a
Tábua Cronológica.

Em 1880 instala-se em Lisboa e adopta as duas filhas do seu amigo íntimo, Germano Meireles, que falecera em Dezembro de 1877. Albertina e Beatriz e a mãe passam a viver com Antero. Instala-se na Calçada de Santa Ana: Fui tão feliz que ontem mesmo achei casa que me convém e a aluguei. É aqui mesmo ao lado da minha irmã, um 3º andar claro e bem arejado. Agora vou tratar de o montar, como aqui se diz, o que ainda levará algum tempo, porque eu faço tudo lentamente e tenho de comprar, a bem dizer, tudo.[xxii]
Preparam-se as comemorações do 3º Centenário da morte de Camões. Antero escreve um violento artigo contra o aproveitamento político da efeméride («Centenários e Centenaristas»). Depois destrói-o. Mas, em cartas, comenta: Esquecia-me dizer-lhe que a grande comissão dos literatos, depois de grave meditar, resolveu celebrar o centenário com uma procissão! Isto é curioso, até no ponto de vista biológico, porque mostra o poder do atavismo. Aos netos dos frades que lhes há-de lembrar senão procissões? A ideia, dizem, partiu do Ramalho, que a apresentou naturalmente como toda moderna e positiva. Notável caso de «regressão morfológica!» O Ramalho, cuidando ir adiante do século, reproduz simplesmente o avô, que era da Ordem dos Terceiros! [xxiii]
A burguesia portuguesa pode por ostentação, levantar uma estátua a Luís de Camões, mas o povo português, esse não sabe soletrar o título do poema que o poeta consagrou às suas glórias .[xxiv]
No primeiro trimestre de 1881, publica-se no Porto uma colectânea com 28 sonetos de Antero, coligidos por Joaquim de Araújo: A edição dos Sonetos pareceu-nos muito bem e o melhor possível. Elegante e fina sem pretensão. Digo nós, porque esta foi também a opinião do João a quem mandei um exemplar. [xxv]
Em Setembro desse ano vai, com as suas pupilas, viver para Vila do Conde: Fixei actualmente a minha residência em Vila do Conde, terrazinha antiga, plácida e campestre, muito ao sabor dos meus humores de solitário. Vivo aqui como um verdadeiro ermita. [xxvi]
Eu aqui consigo fazer uma coisa rara, prodigiosa: dormir. Faço-o como se fosse a coisa mais natural deste mundo! Veja se não hei-de considerar esta terra, além de maravilhosa, salvadora. [xxvii]
«Chegando ao Porto», diz Eça de Queirós, «e correndo com Oliveira Martins a Vila do Conde, avistei na estação um Antero gordo, róseo, reflorido, com as lapelas do casaco de alpaca atiradas para trás galhardamente, e meneando na mão a grossa bengala da Índia que em Lisboa eu lhe dera para amparar a tristeza e a fadiga.» [xxviii]
Aliás, os quase dez anos que Antero irá viver em Vila do Conde, com pequenos intervalos nos Açores e em Lisboa, serão talvez os mais plácidos ou, se se preferir, os menos atormentados da sua vida: Aqui as praias são amplas e belas, e por elas me passeio ou me estendo ao sol com a voluptuosidade que só conhecem os poetas e os lagartos adoradores da luz. [xxix]
Em Agosto de 1882, escreve a sua irmã: Vai vagar a Comarca da Póvoa do Varzim, e o Lobo de Moura pretende ser para ali transferido. Imagina como vai ser bom para mim ficarmos assim vizinhos. Com o Lobo de Moura na Póvoa, o Oliveira Martins no Porto e o Alberto Sampaio em Famalicão, fico literalmente rodeado de amigos. [xxx]
Em 1884, confidencia a Joaquim de Araújo: A minha vida ocorre sem incidentes, quer internos, quer externos. Tenho envelhecido voluntariamente, o que é uma grande coisa. V. fala-me de desilusões. Doa-se, como é natural, mas não as maldiga. As desilusões são a sabedoria que vem ter connosco disfarçada em carrasco. Mais tarde é que se conhece isso. [xxxi]
Em 1885, apoia a adesão de Oliveira Martins ao Partido Progressista (monárquico). Em Março escreve os seus dois últimos sonetos, «Com a Morte» e «O Que Diz a Morte».
Em meados do ano, a mãe das suas protegidas morre, e Antero interna-as no Colégio das Doroteias, no Porto.
Em 1886 são publicados os Sonetos Completos, coligidos e prefaciados por Oliveira Martins. Antero evolui agora de mais uma fase pessimista para um misticismo que explica no folheto «A Filosofia da Natureza» dos Naturalistas: Entro agora numa fase nova, e tenho jurado consagrar-me daqui em diante, todo e exclusivamente, ao trabalho de coordenação definitiva das minhas ideias filosóficas e, se tanto puder, à exposição metódica e rigorosa das mesmas. [xxxii]
Em Março de 1887, vai novamente aos Açores: Tive um certo prazer em tornar a ver a minha terra, ainda que não sei porquê, e talvez só por instinto, pois deve haver uma relação profunda entre o homem e a terra em que nasceu e se criou. [xxxiii] (...) Tem-me agradado esta terra e foi até com certo prazer que ontem me achei a passear no campo de S. Francisco. [xxxiv] É durante esta breve estada que tira, no fotógrafo Raposo, da Rua da Esperança, em Ponta Delgada a sua fotografia preferida: Aí te envio um exemplar da única boa fotografia que tenho... Preferiria não andar gravado nos papéis. Mas, uma vez que já não o posso evitar, aí vai ao menos uma efígie autêntica. [xxxv] Em Outubro regressa a Vila do Conde. É publicada a tradução alemã dos Sonetos.
Em 1889, Columbano Bordalo Pinheiro pinta-lhe o retrato que faz parte da colecção do Museu do Chiado. Diz Columbano: «...Estou a vê-lo com os seus olhos muito azuis e as barbas loiras. Vestia bem, sem afectação e sobriamente... Era calmo, delicado, afável, nenhuma tragédia transparecia na sua maneira quase alegre». Diz Antero: Está muito bem como pintura, mas idealizado, como todas as composições desse pintor neo-vellazquiano, no sentido do fantástico e do tenebroso. [xxxvi]
Começa a escrever o texto filosófico destinado à Revista de Portugal, dirigida por Eça de Queirós: Para mostrar o meu afecto ao nosso Queirós, comecei a escrever com destino à Revista, um artigo sobre as tendências gerais da filosofia na actualidade, coisa sumária; mas o assunto apossou-se de mim, passou a ser quase outra coisa o trabalho, e no fim de três meses acho-me tendo produzido um estudo, que na Revista dará três ou quatro artigos, e que depois, ampliado, será um livro. [xxxvii] Sobre o assunto, diz Eça de Queirós: «Como sabes, o nosso Antero ressurgiu para a vida activa, através da filosofia. Temos dele um primeiro artigo neste número da Revista - que sairá, não sei quando, mas ainda neste século. É extraordinário. Está todo o original na imprensa desde o fim do mês passado!» [xxxviii]
Em 1890, em face da violenta reacção nacional ao humilhante Ultimato inglês de 11 de Janeiro, Antero aceita a presidência da Liga Patriótica do Norte, com existência efémera: Declamar contra a Inglaterra é fácil, emendarmos os gravíssimos defeitos da nossa vida nacional será mais difícil, mas só essa desforra será honrosa, só ela salvadora. Portugal ou se reformará política, intelectual e moralmente ou deixará de existir. Mas a reforma, para ser fecunda, deve partir de dentro e do mais fundo do nosso ser colectivo: deve ser antes de tudo, uma reforma dos sentimentos e dos costumes. [xxxix]
Em princípios de Maio de 1891, deixa Vila do Conde e vem instalar-se na casa de sua irmã Ana de Quental, em Lisboa. Os Vencidos da Vida oferecem-lhe um jantar de despedida no restaurante Tavares. A 5 de Junho, no vapor Açor, parte para Ponta Delgada, hospedando-se no Hotel Brown, alugando depois uma casa no lugar de S. Gonçalo, nos arredores de Ponta Delgada: Encontrei mais cedo do que supunha casa que me convém, estou-a arranjando e espero dentro de um mês ter tudo pronto para receber a minha gentinha. Minha irmã, a quem receitam ares pátrios, acompanha as pequenas e passará aqui dois ou três meses. É pois, como vê, oiro sobre azul. [xl]
Mas no fim de Agosto já diz: Começo a acreditar que não andei bem avisado em vir estabelecer-me em São Miguel. [xli]
É que a sua antiga doença tem vindo a agravar-se. Para piorar as coisas, tem uma desinteligência com sua irmã por causa das pupilas. No auge da discussão com Ana de Quental, Antero exclama: Isto ainda acaba com uma corda na garganta ou uma bala na cabeça! No dia 10 de Novembro vai entregar as duas jovens a uma família a quem confia a sua educação. As despedidas deixam-no vivamente emocionado, transtornado mesmo. No dia seguinte, é um dia húmido de Novembro. São Miguel está, como quase sempre, sob uma espessa camada de nuvens...

DESCANSA-SE!... SE NO TÉDIO DOLOROSO DE NÓS MESMOS ENCONTRAMOS A FORÇA PARA NOS SUMIRMOS

Ao som de dois tiros, acorrem militares do quartel de Caçadores 11. Caído de lado sobre o banco, com o rosto ensanguentado Antero agoniza. O Dr. Jacinto Júlio de Sousa, cirurgião-mor do regimento e o Dr. Mont'Alverne de Sequeira, reputado médico da cidade, chegam logo após. No hospital, situado ali mesmo na praça, tentam tudo para o salvar, mas após uma hora de horrorosa agonia que finaliza pelo derramamento cerebral, Antero morre. Descansa-se!... se no tédio doloroso de nós mesmos encontramos a força para nos sumirmos, diz Antero a Oliveira Martins e a Vasconcelos Abreu, poucos dias antes de partir de Lisboa para Ponta Delgada. No seu doloroso tédio, Antero de Quental encontra a força e o alento para fugir, para se sumir, para descansar enfim.

O QUE DIZ A MORTE

«Deixai-os vir a mim, os que lidaram;Deixai-os vir a mim, os que padecem;E os que cheios de mágoa e tédio encaramAs próprias obras vãs, de que escarnecem...
Em mim, os Sofrimentos que não saram,Paixão, Dúvida e Mal, se desvanecem.As torrentes da Dor, que nunca param,Como num mar, em mim desaparecem.» -
Assim a Morte diz. Verbo velado,Silencioso intérprete sagradoDas coisas invisíveis, muda e fria,É, na sua mudez, mais retumbanteQue o clamoroso mar; mais rutilante, Na sua noite, do que a luz do dia.
_______________
[i] Prefácio ao Tesouro Poético da Infância.
[ii] Bom-senso e Bom-gosto, 1865, Carta ao Excelentíssimo Senhor António Feliciano de Castilho.
[iii] Carta a José e Alberto Sampaio, 1863.
[iv] Carta autobiográfica de Antero.
[v] Carta a António de Azevedo Castelo-Branco, Dezembro de 1865.
[vi] Carta a António de Azevedo Castelo-Branco, Janeiro de 1866.
[vii] Camilo Castelo Branco, in A Doida do Candal.
[viii] Carta a António de Azevedo Castelo-Branco, Fevereiro de 1866.
[ix] Carta a António de Azevedo Castelo-Branco, 13 de Março de 1866.
[x] Carta a Germano Meireles, maio de 1866.
[xi] Carta a António de Azevedo Castelo-Branco, Junho de 1866.
[xii] Carta a Alberto Sampaio, finais de Dezembro de 1866.
[xiii] Carta a Alberto Sampaio, Ponta Delgada, Verão de 1868.
[xiv] Carta a Carlos Cirino Machado, 15 de Dezembro de 1881.
[xv] Carta a Francisco Machado de Faria e Maia, princípios de 1871.
[xvi] Carta ao Marquês de Ávila e Bolama.
[xvii] Carta Oliveira Martins, inícios de 1873.
[xviii] Carta a Germano Meireles, finais de 1875.
[xix] Carta a Oliveira Martins, 28 de Novembro de 1876.
[xx] Carta a Alberto Sampaio, 10 de Outubro de 1878.
[xxi] Carta a Oliveira Martins, 17 de Outubro de 1878.
[xxii] Carta a Alberto Sampaio, Dezembro de 1879.
[xxiii] Carta a Oliveira Martins, Primavera de 1880.
[xxiv] in Portugal Perante a Revolução de Espanha, 1868.
[xxv] Carta a Joaquim de Araújo, 1881.
[xxvi] Carta a João Machado de Faria e Maia, Janeiro de 1882.
[xxvii] Carta a Jaime Batalha reis, finais de 1881.
[xxviii] Eça de Queirós, in Um Génio que era um Santo.
[xxix] Carta a João de Deus, 13 de Janeiro de 1882.
[xxx] Carta a Ana de Quental, 3 de Agosto de 1882.
[xxxi] Carta a Joaquim de Araújo, 11 de Outubro de 1884.
[xxxii] Carta a Carolina Michaëlis, 7 de Junho de 1886.
[xxxiii] Carta a Oliveira Martins, 15 de Março de 1887.
[xxxiv] Carta a Ana de Quental, 12 de Março de 1887.
[xxxv] Carta a Alberto Teles, Maio de 1890.
[xxxvi] Carta a Alberto Bessa, 8 de Maio de 1890.
[xxxvii] Carta a Oliveira Martins, finais de 1889.
[xxxviii] Carta de Eça de Queirós a Oliveira Martins, 28 de Janeiro de 1890.
[xxxix] in «Expiação», A Província, 26 de Janeiro de 1890.
[xl] Carta a Gustavo Barbosa, 30 de Junho de 1891.[xli] Carta a Joaquim de Araújo, 30 de Agosto de 1891.

Olavo Bilac

In Extremis

Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia Assim! De um sol assim! Tu, desgrenhada e fria, Fria! Postos nos meus os teus olhos molhados, E apertando nos teus os meus dedos gelados... E um dia assim! De um sol assim! E assim a esfera Toda azul, no esplendor do fim da primavera! Asas, tontas de luz, cortando o firmamento! Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo... E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! E este medo! Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte, A arredar-me de ti, cada vez mais a morte... Eu com o frio a crescer no coração, — tão cheio De ti, até no horror do verdadeiro anseio! Tu, vendo retorcer-se amarguradamente, A boca que beijava a tua boca ardente, A boca que foi tua! E eu morrendo! E eu morrendo, Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo Tão bela palpitar nos teus olhos, querida, A delícia da vida! A delícia da vida!

Olavo Bilac

Casimiro de Abreu

MEUS OITO ANOS

Oh! que saudades que tenhoDa aurora da minha vida,Da minha infância queridaQue os anos não trazem mais!Que amor, que sonhos, que flores,Naquelas tardes fagueirasÀ sombra das bananeiras,Debaixo dos laranjais!Como são belos os diasDo despontar da existência!- Respira a alma inocênciaComo perfumes a flor;O mar é - lago sereno,O céu - um manto azulado,O mundo - um sonho dourado,A vida - um hino d'amor!Que auroras, que sol, que vida,Que noites de melodiaNaquela doce alegria,Naquele ingênuo folgar!O céu bordado d'estrelas,A terra de aromas cheia,As ondas beijando a areiaE a lua beijando o mar!Oh! dias da minha infância!Oh! meu céu de primavera!Que doce a vida não eraNessa risonha manhã!Em vez das mágoas de agora,Eu tinha nessas delíciasDe minha mãe as caríciasE beijos de minha irmã!Livre filho das montanhas,Eu ia bem satisfeito,Da camisa aberto o peito,- Pés descalços, braços nus -Correndo pelas campinasÀ roda das cachoeiras,Atrás das asas ligeirasDas borboletas azuis!Naqueles tempos ditososIa colher as pitangas,Trepava a tirar as mangas,Brincava à beira do mar;Rezava às Ave-Marias,Achava o céu sempre lindo,Adormecia sorrindoE despertava a cantar!Oh! que saudades que tenhoDa aurora da minha vidaDa minha infância queridaQue os anos não trazem mais!- Que amor, que sonhos, que flores,Naquelas tardes fagueirasÀ sombra das bananeiras,Debaixo dos laranjais!
Casimiro de Abreu (Rio de Janeiro, 1839 -1860)

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